30/06/2015
Missão de professor
O papel do docente hoje é fazer parceria com os alunos
Reflexões sobre a função e o lugar da escola hoje. E sobre como profissionais, recrutados no mercado por sua reconhecida experiência no “fazer”, podem suprir a falta de preparo didático, transformando-se em facilitadores do aprendizado dos discentes.
Por Carlos Costa
Jornalista e professor na Faculdade Cásper Líbero. Licenciado em Filosofia e bacharel em Jornalismo, é mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da USP. Atualmente é diretor da Faculdade Cásper Líbero e conclui seu pós-doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP).
Jornalista e professor na Faculdade Cásper Líbero. Licenciado em Filosofia e bacharel em Jornalismo, é mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da USP. Atualmente é diretor da Faculdade Cásper Líbero e conclui seu pós-doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP).
A preparação dos professores constitui a questão primordial de todas as reformas pedagógicas, pois enquanto ela não for resolvida de forma satisfatória, será totalmente inútil organizar belos programas ou construir belas teorias a respeito do que deveria ser realizado.
Jean Piaget
Ora, se a educação está intimamente vinculada à filosofia de cada época, que lhe define o caráter, rasgando sempre novas perspectivas ao pensamento pedagógico, a educação nova não pode deixar de ser uma reação categórica, intencional e sistemática contra a velha estrutura do serviço educacional, artificial e verbalista, montada para uma concepção vencida. [..] A educação nova, alargando a sua finalidade para além dos limites das classes, assume, com uma feição mais humana, a sua verdadeira função social, preparando-se para formar “a hierarquia democrática” pela “hierarquia das capacidades”, recrutadas em todos os grupos sociais, a que se abrem as mesmas oportunidades de educação. Ela tem, por objeto, organizar e desenvolver os meios de ação durável com o fim de “dirigir o desenvolvimento natural e integral do ser humano em cada uma das etapas de seu crescimento”, de acordo com certa concepção do mundo.
Anísio Teixeira
(Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova - Março de 1932)
De certo modo, deveríamos deixar de lado os diplomas como medida de competência. Outra razão é a de que um diploma marca um final ou uma conclusão a respeito de alguma coisa, e o aprendiz está interessado somente num processo contínuo de aprendizado.
Carl Rogers
As escolas estão preparando – e em muitos casos, preparando mal – os alunos com conhecimentos e habilidades que eles precisavam para viver nos dias de ontem, diz o professor Thomas Joseph Burke, em seu livro O professor revolucionário. E o pior de tudo, conclui, é que os alunos precisam sair da escola bem preparados para viver, não no passado, nem mesmo hoje – que logo se torna passado – mas nos incertos e cambiantes dias de amanhã. Isso se dá porque, em nosso sistema escolar, o professor detém um conhecimento gerado e aprendido anteriormente, que lhe foi transmitido por professores. E, em sala de aula, ele tenta agora repassar isso para os alunos, num círculo que se repete (Burke, 2003: 16). Enquanto isso, os alunos, ah, os alunos vivem mergulhados em outro mundo, repleto de novidades, de novas tecnologias, novos programas e atrações... Daí o apelo do professor à “motivação exógena”, artificial. O apelo aos recursos audiovisuais, às habilidades de show man, à disciplina, às notas, às temidas provas e vários tipos de chantagem: tudo para obrigar o aluno, esse rapaz e essa moça “da geração zapping”, a “prestar atenção a uma aula” ...
Tudo seria diferente se o ensino e o papel do professor fossem encarados não como uma transmissão, mas como uma busca e uma construção de saberes. Sobre isso conversaremos nos parágrafos que se seguem.
A sala de aula não precisa estar restrita ao espaço delimitado pelas quatro paredes, o quadro negro e as carteiras dos alunos. Ela deve abrir-se – eliminando o que no cinema ou no teatro se chama “a quarta parede”.A escola na berlinda
Talvez nunca tenha se falado, questionado e discutido sobre escola, e os caminhos da educação, como nos dias de hoje. Essa é uma pauta recorrente no discurso de partidos políticos, de líderes comunitários, dos responsáveis pelas muitas instâncias do Ministério e das Secretarias da Educação, de pedagogos e consultores – dos que pensam caminhos para o futuro. Curiosamente, talvez, seja a própria escola que não encontre tempo para discutir seus rumos. Mas parece ser um consenso, hoje, que a instituição escolar precisa ser entendida não apenas como o lugar em que se realiza a construção do conhecimento, mas, muito além, ser pensada como um espaço em que se reflete criticamente acerca das implicações políticas desse conhecimento. Os conteúdos culturais que a escola trabalha e atualiza se referem ao conhecimento, destrezas e habilidades que os formandos (cidadãos) usam para construir e interpretar a vida social.
Dificilmente se pode afirmar que as tarefas escolares que se colocam frente aos alunos nas salas de aula os capacitem para refletir e analisar criticamente a sociedade de que fazem parte, preparando-os para nela intervir e participar de forma mais democrática, responsável e solidária. É difícil dizer que os processos de ensino e aprendizagem que ocorrem em nossas escolas sirvam para motivar o aluno para envolver-se ativamente em processos tendentes a eliminar situações de opressão (Santomé, 2002: 176). A escola deve realizar uma reflexão profunda sobre essa falha.
A sala de aula deve prolongar-se pela biblioteca, pelos corredores, pelos museus, pelos cinemas, pelas salas de exposições, pelas lojas, pelas fábricas, enfim, pelo meio ambiente físico e social onde o verdadeiro aprendizado se desenvolve, é concreto e ligado à vida real.Além disso, assistimos nos últimos anos a uma explosão de centros universitários. Por um lado, isso é uma imposição dos tempos atuais e ocorre em todo o mundo, num momento em que a educação é vista como o passaporte para o desenvolvimento, e de algum modo se torna também um grande negócio – um negócio mundial que movimenta algo em torno de 300 bilhões de reais ao ano. Não é por acaso que países como Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos envidam esforços para incluir a educação entre as “commodities” discutidas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), como já denunciou o professor Arthur Roquete de Macedo, reitor da Fiam-Faam (Macedo, 2002).
Nesse contexto, cabe a nós acompanhar criticamente o que ocorre a nosso redor, como o surgimento desses “novos templos do saber”, essas novas universidades com seus edifícios envidraçados, que lembram sintomaticamente shopping centers. Se em 1993, tínhamos 873 IES, elas ultrapassaram a marca dos 1.859 em 2003. Hoje temos 32.000 cursos de graduação, oferecidos por 2.400 instituições de ensino superior – 301 públicas e 2 mil particulares. As universidades são responsáveis por 53,4% das matrículas, enquanto as faculdades concentram 29,2%.
Ou seja, em duas décadas as universidades e centros universitários triplicaram. Há uma oferta de cursos de terceiro grau em qualquer bairro da cidade de São Paulo. E, além dos cursos de graduação, pululam os cursos de especialização e os MBAs, seja lá o que isso queira dizer no atual panorama nacional de ensino. As propagandas desses cursos louvam a alta qualificação dos professores, “profissionais renomados no mercado”. Apenas como exemplo, pode-se reproduzir o texto testemunhal de um aluno (retirado do site http://www.ibta.com.br/): “A pós-graduação em Segurança da Informação está além das minhas expectativas, é muito bem administrada, os professores são de altíssima competência, sem falar no coordenador que é um profissional experiente e reconhecido no mercado”.
No entanto, a maioria dos 321.000 docentes da educação superior possui mestrado ou doutorado. Considerando-se que o mesmo professor pode atuar em mais de uma instituição, em 2013, havia 367 mil funções docentes, sendo 70% mestres ou doutores. Nos últimos dez anos, o número de mestres e doutores na rede pública cresceu 90% e 136%, respectivamente, segundo o relatório do Inep/MEC 2013.
Ou seja, com os movimentos de reengenharia e downsizing (enxugamento de estruturas) das grandes corporações, que aconteceram de forma mais acelerada nos últimos trinta anos, muitos profissionais migraram de seus postos de executivos para o magistério, ocupando as salas de aula da crescente implantação de faculdades. Esse movimento atende o que pedem muitos dirigentes de empresas: mão-de-obra preparada, treinada para produzir. Os papas do novo “new management” clamam justamente por uma “escola responsável”, como se referiu o hoje esquecido Peter Drucker[1]. Querem uma universidade que se preocupe e ocupe de preparar profissionais prontos para “atuar no mercado”. Revelam, assim, uma preocupação pragmática e utilitarista, mas ao mesmo tempo uma visão de pouco alcance. Afinal, como ensina o pesquisador Carlos Henrique Brito Cruz, diretor-científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), se a universidade fosse medida pelo parâmetro de “formar mão-de-obra para o mercado”, o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) não teria sido criado. “Quando o Brasil resolveu criar o ITA, em 1947, a intenção era formar engenheiros aeronáuticos. Qual era o mercado, então? O país não tinha nem indústria aeronáutica. Esta foi resultado da criação daquela escola. Ou seja, uma ação de Estado, no Brasil, formou um mercado, criou a terceira maior fábrica de aviões do mundo. Como? Proporcionando bom ensino superior nessa área. Hoje até o Canadá vem buscar engenheiros formados pelo ITA” (Cruz, 2004).
O professor Muniz Sodré, ao discorrer sobre o lugar e o papel da escola e do educador em seu livro A antropológica do espelho. Uma teoria da comunicação linear e em rede, utiliza como exemplo um antigo conto sufi, que mostra a diferença entre o arqueiro desinteressado (distendido e com o domínio de toda a sua habilidade) e o arqueiro interessado (em busca do prêmio e da utilidade). No primeiro caso, o arqueiro desfruta da liberdade de com sua flecha atingir o alvo pelo prazer do ato bem feito (poético), da prática sem automatismo; no segundo, ele é limitado pelo interesse e pela pressão de acertar e ganhar o prêmio, e terá aumentadas as chances de errar. Essa imagem ilustraria a diferença entre hexis e ethos, a busca do fazer bem feito ou do fazer por seguir a norma. Educar implica ir além da repetição de um costume, valorizando os impulsos da liberdade que transformam o ethos em hexis (Sodré, 2002: 85). Para ele, o processo pedagógico é precisamente o contrário do mero treinamento utilitarista que se busca na contemporaneidade. Daí a valorização humanista, no passado e no presente, do processo de aprendizagem.
Educação, mais que adestramento para a eternização de valores estabelecidos, é um processo. E nesse processo, há o encontro com o incerto, eclodem as mudanças, surge o novo. A consciência moderna do processo educacional – e é ainda Muniz Sodré quem nos guia – surgiu nos séculos XVII e XVIII: quando a educação universal passa a ser vista como exigência radical de uma visão humanista. “O homem deve ser educado para se tornar humano”, dizia o pedagogo checo Jan Amos Comenius (1592-1670). A educação logo mais passa a ser entendida com um viés da formação da identidade nacional e como formação para a vida em comunidade. O processo de educação é a recriação (ético-política) inteligente do passado, a imaginação (cri)ativa do futuro e a ampliação do espaço público, ensina Muniz Sodré.
É com esse viés que o educador espanhol Jurjo Torres Santomé escreve:
As instituições escolares são lugares de luta, e a pedagogia pode e tem que ser uma forma de luta político-cultural. As escolas, instituições de socialização, têm como missão expandir as capacidades humanas, favorecer análises e processos de reflexão em comum da realidade, desenvolver nas alunas e nos alunos os procedimentos e destrezas imprescindíveis para sua atuação responsável, crítica, democrática e solidária na sociedade (Santomé, 2002: 175).
No Brasil, o processo educacional foi visto como arma para a construção da hegemonia. As ideias de Anísio Teixeira seguiam os passos de John Dewey e a teoria da “nova escola”, defendendo a igualdade de oportunidades para todos (e ultrapassando a antiga visão de uma educação qualificada para a elite e um aprendizado socialmente desqualificado para o proletariado, o “ensino técnico”). Fernando de Azevedo e depois Paulo Freire deram passos significativos: a escola pública e gratuita, com professores e pesquisadores articulando o processo educacional com as ciências sociais e concebendo esse processo não como um fim em si, mas como meio de modernização social.
O fenômeno da geração shopping center
Mas essas visões refletiam, segundo Muniz Sodré, uma concepção taylorista/fordista do mundo do trabalho, que organizava a produção pela divisão e especialização das tarefas, numa rígida estrutura hierárquica. Além disso, esse modelo era baseado num panorama de pleno emprego e elevação do nível de vida, marca dos meados do século passado.
Atualmente, o mundo vive num cenário de maleabilidade e de transformações: fluxos horizontais de informação e comando (não hierarquizados); busca da qualidade dos produtos, estímulo às iniciativas das bases, valorização do trabalho de equipe e da aprendizagem permanente – essas são algumas das faces do que se convencionou chamar de sistema do “toyotismo” (Sodré, 2002: 90). E isso convive com dados novos, que criam um panorama que para alguns chega a ser assustador: a emergência e premência de um mundo globalizado e mediatizado, online, com as informações e os processos atingindo a velocidade da vertigem. Esse cenário gera impactos nas instituições pedagógicas, não apenas pelo novo tipo de aluno que comparece às salas de aula, mas também pela introdução de possibilidades e recursos de ensino, entre eles a do ensino a distância (EAD), não-presencial.
Pensar a educação hoje nos obriga a levar em conta a mudança crucial na vida das sociedades, resultado da alteração dos paradigmas de acumulação do capital, além das inovações da tecnologia. As mídias sociais afetam a forma de transmissão do conhecimento acadêmico, sobretudo o paradigma (lembrando as teorias de Thomas Kuhn) do analógico-digital. Isso implica numa revisão de conceitos, pois as transformações ocorridas nas ciências físicas – no sentido de privilegiar as noções de acontecimento, singularidade, interpretação – apontam para a fluidez e para o lado provisório e cambiante das estruturas. O imprevisível, o aleatório, os fenômenos suscetíveis de interpretações variadas são hoje reconhecidos como científicos. Nesse contexto, o pensamento não é mais o resultado solitário de um sujeito pensante, na leitura isolada de um livro, mas a soma de uma rede em que neurônios, módulos cognitivos, humanos, instituições de ensino, línguas, processos, fontes diferentes de informação que formam e traduzem as representações (na linha das teorias de Josep M. Català ou de Pierre Lévy). Pode-se dizer que o objeto passa a ter uma parte ativa no processo de conhecimento. Mas, muito mais do que isso, estamos diante de um gap geracional (entre docente e discente) muito mais profundo e, em alguns casos, assustador.
Tem havido, nas últimas décadas, e em todo o chamado “mundo ocidental”, uma espécie de pânico moral, cujo foco é o suposto desvio da juventude contemporânea – não apenas sua diversidade ou diferença, mas, mais radicalmente, sua alteridade e o que isso pode representar para o observador. Esse “desvio” costuma ser apresentado não como a mudança que claramente parece ser, mas como questão de déficit, de incompletude e inadequação. O tom de alguns analistas é fortemente apocalíptico e essa mudança é concebida como uma “patologia”.
A juventude foi vista, em gerações anteriores, como um estágio temporário no movimento em direção à maturidade e à vida adulta. Essa passagem, que costumava ser ordeira, tornou-se agora carregada de arbitrária incerteza. O jovem é visto quase como um extraterrestre, um E.T. (e aparentemente ele gosta de se portar como tal). O que ocorre, na realidade, é que essa passagem marca agora um novo tipo de subjetividade em formação, a partir da junção entre a cultura dos jovens e o crescente complexo global da mídia. Desse mergulho dos jovens no mundo do whatsapp, instagram, facebook, imagens em alta velocidade, um zapping sem fim (Sarlo, 2000) pelas centenas de canais da TV, experiências virtuais em 3D, se gesta uma identidade inteiramente nova.
A rapidez mental e visual que o jovem desenvolve desde criança, ao manipular smartphones e Xbox; a capacidade de ler enquanto ouve música, vê televisão e conversa com um amigo escrevendo palavras meio-criptografadas no chat da internet assusta os educadores de outras gerações. Explica a especialista Gabriela Campedelli: “O modo de ver televisão mudou nos últimos anos graças ao controle remoto. Outra razão também pode se esconder na mudança da percepção do telespectador, sobretudo no que se refere às gerações mais novas. O videogame deve ter colaborado para a exigência de uma edição mais ágil. Enquanto a televisão só consegue alcançar em NTSC seus 30 quadros por segundo, o videogame parte para a velocidade do tempo real utilizando em console 80 quadros por segundo” (Campedelli, 2004: 45). Para alguns analistas e estudiosos é mais do que um susto. Eles falam de uma geração “sem qualquer sentido de história”, viciada em cultura popular (televisão, videojogos, música em smartphone), sem aspirações mais elevadas.
Acompanhei, em anos passados, as angústias de um novo professor da Cásper Líbero, jornalista e crítico cultural com larga experiência, mas que se assustava ao entrar em sala de aula e se deparar não com uma platéia atenta, mas com alunos dispersos, conversando no celular, saindo e voltando no meio da aula, fazendo comentários paralelos, sem observar o silêncio ritual que se esperaria em uma “aula magna”. Não se deve esperar do jovem de 2015 a silenciosa atenção dos 300 ou 400 ouvintes das palestras de Roland Barthes nos anos 1960. Não é essa a cultura do jovem agora, ele não assiste, ele está constantemente “escaneando” seu entorno, antenado no tudo ao mesmo tempo agora. E na contramão de tudo isso que acontece, o professor se queixa de seus alunos, alega que são iletrados, não gostam de ler, têm uma visão fragmentada das coisas. Afinal, eles seriam a “geração do zapping e do shopping center”, de que falava Beatriz Sarlo em seu livro Cenas da vida pós-moderna. E alguns professores se vingam, colecionando “pérolas” tiradas de redações de seus aprendizes, em espírito de chacota.
Como ressalta a pesquisadora N. Katherine Hayles, esse “susto”, esse “gap”, apenas revela uma dicotomia geracional, mais aprofundada por causa das proporções do que ocorre no mundo atual. “As experiências anteriores das pessoas mais velhas agem como âncoras que as impedem de entrar plenamente na corrente pós-moderna, uma corrente constituída de contextos agregados e de tempos descontínuos. Carentes dessas âncoras e imersos na internet, os jovens estão numa posição privilegiada para saber, a partir da experiência direta, o que significa não ter nenhum sentido de história, o que significa viver num mundo de simulacros e ver a forma humana como provisória. Pode-se argumentar que as pessoas que mais sabem o que significa sentir (o que é diferente de conceber ou analisar) o pós-modernismo, têm, todas, menos de 16 anos” (N.K. Hayles, citada por Green & Bigum, 2002: 216). Henry Jenkins, Carlos Scolari, Paul Virilio e tantos outros teóricos do início deste século falam, analisam e teorizam sobre realidades vividas pelos jovens, rapazes e moças que ocupam os bancos de nossas salas de aula.
Uma geração sem rumo ou com novo rumo?
Bill Green e Chris Bigum, pesquisadores australianos, comentam o caso de um relatório publicado em seu país e que apontaria as “mazelas do ensino secundário”. O sistema educacional australiano estaria preparando, na visão da autora daquele relatório, Dra. Susan Moore, uma “geração perdida”. Afirma Susan Moore: “Esses jovens vão para a vida adulta menos informados do que precisam estar, tanto sobre o mundo em que vivem quanto sobre seu lugar nele. Eles nada sabem sobre a continuidade humana e o que outros povos, em outras épocas, fizeram com suas vidas”. A publicação desse relatório, patrocinado por grupos da “direita australiana”, sempre segundo Bill Green e Chris Bigum, acabou dando motivo a um virulento editorial “Caminhando para um país ignorante” (curiosamente, os autores não identificam o nome do jornal que publicou tal libelo). Um discurso com que nós, brasileiros, estamos bastante familiarizados.
Essa visão de um futuro sombrio muitas vezes adota postura apocalíptica quando fala do “problema dos jovens de hoje”. Esse tom permeia as conversas que ouvimos nas salas de professores e está presente em textos de analistas e cientistas sociais. Para ficar com alguns poucos exemplos, citemos o pedagogo americano Neil Postman, o cientista político italiano Giovanni Sartori ou o também educador americano Allan Bloom. Postam, autor de O fim da educação, escreveu: “Algumas formas de dizer a verdade são melhores que outras e, portanto, têm uma influência mais saudável sobre a cultura que as adota... Espero persuadi-los de que o declínio da epistemologia de base impressa e a paralela ascensão da epistemologia de base televisiva têm tido conseqüências graves para a vida pública. Estamos ficando cada vez mais estúpidos”. Sartori, em um livro já clássico contra a televisão, Homo Videns. Televisão e pós-pensamento, exorciza a geração alfabetizada pelas imagens. Escreve, inflamado:
Na verdade, o problema de fundo é que a televisão criou e está criando um homem quenão lê, que revela um alarmante entorpecimento mental, um “molóide criado pelo vídeo”, um viciado na vida dos videogames. [...] Os jovens são indivíduos cada vez mais perdidos, desviados, anômicos, entediados, em crise depressiva, em suma, “doentes de vazio”. [...] Afirma-se hoje que na escola as crianças devem ser entretidas. Assim não se ensina sequer a escrever, e o exercício da leitura fica o mais possível marginalizado. (Sartori, 2001: 24 e 141).
Segundo Allan Bloom, os pais não conseguem mais controlar sequer o ambiente doméstico e perderam até a vontade de fazê-lo. Assim, com sutileza e energia, a internet entra não apenas no quarto, como ocorria com a TV: a mobilidade dos smartphones leva a imagem em movimento como o caracol carrega consigo sua casa. Esse texto é antigo, mas ilustra bem:
Imagine um garoto de 13 anos sentado na sala de estar da casa de sua família, fazendo sua tarefa de matemática, ao mesmo tempo em que tem aos ouvidos os fones de seu walkman ou que vê a MTV. Ele desfruta das liberdades arduamente conquistadas ao longo dos séculos pela aliança do gênio filosófico e do heroísmo político; ele desfruta do conforto e do lazer fornecidos pela economia mais produtiva da história da humanidade. A ciência penetrou os segredos da natureza para lhe permitir essa maravilhosa, fiel reprodução eletrônica da imagem e som que está desfrutando. E o progresso culmina em que? Numa criança pubescente cujo corpo pulsa com ritmos orgásmicos; cujos sentimentos são articulados em hinos ao prazer do onanismo ou ao assassinato dos pais; cuja ambição é ganhar fama e riqueza (Bloom, apud Green&Bigum, 2002: 225).
Essa visão, reveladora de franca hostilidade por parte de agentes envolvidos no processo de escolarização se dá em parte pelo medo de que esses jovens venham a deslocar a “alta cultura” ou a destruir o “alfabetismo cultural”. Medo do novo e do desconhecido. Falta, por parte dos educadores, segundo Green e Bigum, um reconhecimento de que o jogo mudou radicalmente, e que novas formas e maneiras de ver o mundo e de captar conhecimento estão emergindo. E, em vez de usar ou buscar instrumentalizar a capacidade desse jovem antenado, plugado na internet e no celular, capaz de estudar matemática enquanto ouve música ou saracoteia ao ritmo do último clip da TV, o professor, despreparado, prefere lançar anátemas. E, diante do desinteresse e desmotivação do aluno em sua aula – tantas vezes pesada e monótona – da indisciplina, repetência, o professor diz: “Tanto esforço, afinal, para que?” (Masetto, 1992: 16). Ou o mestre, desajeitado, tenta correr atrás do prejuízo, esquecendo, como ensina Celso Antunes (2003: 17), “que em time que joga com classe, quem corre é a bola, não o jogador”.
Por isso, nós professores nos apegamos a categorias confortadoras e à memória de uma era na qual o mundo parecia muito mais previsível, menos fragmentado, e a certeza era mais tangível. “Uma vez que vivemos no interior das agonizantes ou marginalizadas culturas impressas e das emergentes culturas audiovisuais, aqueles de nós que fomos condicionados toda a nossa vida a ‘pensar como um livro’, simplesmente não podemos compreender os que podem aprender a pensar e a expressar seus pensamentos por meio de imagens holográficas em movimento. E essas novas culturas que estão nos impactando parecem tão incompreensíveis quanto as ‘mentes selvagens’ das sociedades pré-alfabeto que distorcemos ou destruímos” (Jim Dator, citado por Green&Bigum, 2002: 230). E esse mesmo Jim Dator, pesquisador e professor de Estudos sobre o Futuro, na Universidade do Havaí, pergunta: “Nós, que fomos condicionados durante toda a nossa vida a pensar como um livro, seremos capazes de lidar com essa diferença?” Ele mesmo reconhece: desconfia que não.
Diante desse quadro, qual é o papel do professor?
Claro que o panorama descrito no bloco anterior também deve ser questionado. Existem, sim, alunos que chegam à universidade despreparados, com sérios problemas de realizar conexões mentais, com deficiências de uso do idioma ou até de alfabetização. Alunos desconectados, resultado da precarização por que passa o ensino básico e o secundário, e do desinteresse da família, que passa toda a formação para a responsabilidade da escola. Também o professor dos ciclos anteriores estão em muitos casos despreparados, sabidamente mal remunerados, muitas vezes manipulados por lideranças sindicalistas mais interessadas em discutir ideologia do que o processo educativo.
É certo que nem se pode falar propriamente de um “modelo” de professor universitário no panorama do ensino brasileiro, conforme ensina Marília Costa Morosini (Morosini, 2000: 19). O vertiginoso aumento por que passou o ensino de terceiro grau nas últimas décadas, como já comentado, fez com que muitos profissionais tenham se direcionado para o magistério sem preparação prévia. Embora, como se disse, a maioria dos 321.000 docentes da educação superior possui mestrado ou doutorado, Considerando-se que o mesmo professor pode atuar em mais de uma instituição, em 2013, havia 367 mil funções docentes, sendo 70% mestres ou doutores, falta um perfil mais detalhado desse professor. Mas o fato é que muitos deles, recrutados no mercado de trabalho por reunirem os saberes e os segredos da prática profissional, detentores do conhecimento prático, na maioria das vezes não têm preparo de como organizar um projeto de aulas, de como administrar crises com os discentes, ou até de como preencher um diário de classe. Afinal, se os cursos das faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, têm (em seu currículo para a licenciatura) as disciplinas voltadas para a formação para o magistério (didática, planejamento, avaliação e prática de ensino), o mesmo não ocorre, por exemplo, num curso de Administração, de Economia ou de Jornalismo. E, embora pelos critérios do MEC nós, professores formados em jornalismo, ganhamos uma pontuação extra “pela aderência” ao curso, quando lecionamos em faculdades de comunicação, muitos não tivemos o preparo didático para as situações concretas em sala de aula, e devemos reconhecer: essa é uma limitação, apesar da aderência.
E as IES, no apressado da hora, pouco ou nada destinam de tempo e recursos para capacitar esses professores recrutados no mercado. Os que dão certo como docentes buscaram por conta própria seu caminho na base da tentativa, do erro e do acerto, ou tiveram a iniciativa de buscar em livros e em palestras algum suporte, para melhorar sua atuação.
Então, que tipo de professor encontramos? Há tipologias clássicas, e uma pesquisa na internet revela perfis curiosos, classificando os professores em: 1) manipuladores (acreditam haver necessidade de uma cuidadosa manobra com os alunos para que aprendam, mesmo quando não quiserem); 2) deterministas (acham que os adultos sabem o que o discente deve aprender); 3) orientadores (os que defendem a existência de um determinado processo para a aprendizagem, conteúdo e a forma aos quais todos devem ser submetidos); e 4) avaliadores (entendem que todos os alunos, como tiveram a mesma formação e assistiram às mesmas aulas, devem ser avaliados igualmente).
Para Abraham Maslow, o pai da teoria da motivação, os docentes podem ser agrupados em dois grupos, os objetivistas (que se orientam pelas necessidades exteriores do educando, como a aquisição de conhecimentos “úteis”, formas de obtenção de papéis sociais, com o emprego de técnicas controladoras e avaliadores, receitas e regras do tipo “quando ocorrer isso, faça assim, que dará certo”) e os subjetivistas (docentes que consideram os aprendizes como indivíduos, possuidores de personalidade própria, consciência, criatividade, em busca de crescimento auto realizador) (Maslow, 1975).
Luiz Ferracini apresenta uma tipologia mais complexa (Ferracini 1990). A seguir, um condensado de sua lista de tipos de professor: 1) O desanimado (não chega a ser relapso, mas falta-lhe o brilho do entusiasmo pelo que faz); 2) o saudosista (desempenha a contento suas tarefas, mas para ele escola boa era a de antigamente, hoje haveria apenas ensino do “faz de conta”); 3) o critiqueiro (antenado em leis e portarias sobre educação, só enxerga o lado negativo da realidade); 4) o alienado (meio camaleônico, está de bem com todos, não toma partido; para ele educar é fazer a vontade dos alunos); 5) o policial-terrorista (sempre do lado da direção, é disciplinado ao extremo, exige que os alunos decorem conteúdos, espalhando medo, ameaçando com notas baixas ou com provas que não buscam avaliar aprendizado); 6) celetista (dá aula em diversas IES, não tem interesse pelos problemas da escola e do aluno; como não cria raízes na instituição, também não deixa saudades por onde passa; ensina mas não educa); 7) bico (é um dos tantos que atuam em diversas frentes e empregos: para uns trata-se de necessidade e para outros lecionar é questão de prestígio e projeção); 8) ideologizador (faz discursos e pregação; não perde uma oportunidade de mostrar sua visão do mundo e da política: ou é engajado em movimentos sociais, se definindo de esquerda, ou adota postura oposta, de cunho moralista); 9) autoritário (dominador, entende que cabe só a ele tomar decisões. “Por lei, em sala de aula, gozo de autonomia, aqui quem manda sou eu”).
A essa lista (condensada, deixo claro), poder-se-ia acrescentar um décimo tipo, que seria o do professor “expressor”, expressão utilizada pelo pesquisador e semiótico uruguaio Fernando Andacht em seu estudo sobre os personagens do Big Brother Brasil e de sua versão argentina, El Gran Hermano (Andacht, 2003: 84 e segs.). Expressor é aquele professor que dá aulas-magnas, fala o tempo todo, um discurso que encanta os alunos, mas que não permite interrupções, perguntas ou dúvidas, ele é o show. Ao final do curso, os alunos (que adoravam suas aulas e shows) se dão conta de que não há assunto para avaliação, de que nada aprenderam...
Para Paulo Freire, o professor é uma fonte de opões para satisfação dos interesses do aluno, dentro dos limites de sua formação. Ou seja, Freire não entende o professor como um “facilitador”, mas como uma opção para o aluno interessado. Pode ser um provocador, não um facilitador.
Afinal, o que esperar de um professor?
Não é ser o show-man, o “expressor”. Muito menos ser o novidadeiro, aquele que traz para suas apresentações em aula as últimas técnicas e invenções para “transmitir o saber” (data-show, internet online, games). Quanto mais expositivo for o método didático utilizado, quanto mais discorrer sobre os raciocínios que ele próprio e outros autores fizeram para chegar aos conhecimentos que pretende transmitir, quanto mais “explicar a matéria” e mais seus alunos forem meros espectadores, tanto menor será o aprendizado e menos eficaz será o mestre em sua tarefa. Escreve o professor Thomaz Joseph Burke:
Os alunos gostam do mestre que explica tudo, mas isso pode ser muito ruim para eles. Quando o professor faz pelo aluno a maior parte do trabalho mental, ele rouba do aprendiz justamente o que é mais fundamental em todo o processo. Em contrapartida, quando o professor estimula seus alunos a fazerem a maior parte do trabalho, a exercer as mais variadas atividades mentais, está proporcionando a oportunidade de eles realmente assimilarem e construírem seus novos conhecimentos, e concomitantemente desenvolvendo o que lhes será mais útil pelo resto de suas vidas: a capacidade de aprender por conta própria, de pensar com a própria cabeça (Burke, 2003: 47).
Pois, ensina Burke, o aprendizado só pode ser realizado pelo próprio sujeito que aprende, e isso tem uma implicação profunda em toda a metodologia de ensino. É o aluno que deve pôr em ação seus mecanismos ou esquemas de assimilação, seu jeito de aprender. Ele pode receber do professor os estímulos e informações, mas nada garante que os assimilará. Agora, sem dúvida aprenderá se tiver de pesquisar, procurar, trabalhar esses dados e informações. Aí está a diferença entre ensinar e aprender. Ensinar, no caso, deixa de ser entendido como uma transmissão/recepção de informações e conhecimentos já prontos, e passa a ser uma forma de detonar um processo ativo e assimilador que, ao pôr em marcha os esquemas e estruturas que o aluno dispõe, mobiliza conhecimentos e origina novas experiências (Burke, 2003: 46).
Quantos professores se iludem com a parafernália das “novas tecnologias”. Estão apenas modernizando um velho esquema de manter os alunos passivos, entretidos com imagens e sons. Mas eles não estão produzindo conhecimento, não vivem um contato direto com fontes e nem realizam suas próprias descobertas. A roupagem é moderna, mas o conteúdo e a aula são tradicionais: o professor que tudo sabe contra os alunos (a-lumen, sem luz, como ouvi de um professor durante um congresso), que anotam embevecidos todas as pérolas de saber que lhe são lançadas.
O professor não é quem ensina, mas quem ajuda o aluno a aprender e aprende com ele. O professor não mostra; ajuda o aluno a enxergar e descobre com ele (Burke 2003: 59). No viés proposto por Carl Rogers, o professor atua como facilitador do aprendizado do aluno. É ele quem diz:
O único aprendizado que influencia o comportamento de uma forma significativa é a autodescoberta, o auto-aprendizado próprio de cada pessoa. Este auto-aprendizado, partindo-se do ponto de que foi pessoalmente apropriado e assimilado por meio da experiência, não pode ser diretamente comunicado a outras pessoas. Assim que um indivíduo tenta comunicar uma de suas experiências pessoais diretamente para outros, frequentemente com um grande entusiasmo natural, isto vem a ser “ensinar”, e seus resultados são desprovidos de consequências. Senti certo alívio ao descobrir recentemente que Soren Kierkegaard, o filósofo dinamarquês, também chegou a esta mesma conclusão, e a enunciou de forma bastante clara há um século. Isto fez com que minhas idéias parecessem menos absurdas (Rogers, 1961: 275).
O modelo vertical do mestre como organizador da disciplina (palavra que remete à ordem do quartel) está na berlinda. A “emoção e o sofrimento” (pathos), de onde emerge o saber, pertencem tanto ao professor (que deve colocar-se também como aquele que não sabe) quanto ao aluno: os pensadores da educação referem-se freqüentemente ao duplo significado da palavra grega manthano: ensinar e aprender ao mesmo tempo. Professor é aquele que aprende duas vezes. O bom professor, dizia Heidegger, está mais avançado que seus alunos somente naquilo que tem mais a aprender do que eles, ou seja, no fazer aprender. Mas o lugar e a presença do professor como agente motivador, iniciático, continua imprescindível (Sodré, 2002: 99).
Como ensinava Piaget, no processo de descoberta ativa por parte do aluno, o professor continuará a ser um animador indispensável. Ele criará situações e armará os dispositivos iniciais para despertar na classe o interesse pela pesquisa dos tópicos apresentados e dirimir dúvidas. A ele caberá, também, sistematizar as conclusões dos aprendizes, levando à reflexão que obrigue o controle das soluções demasiado apressadas. O que se deseja é que o professor deixe de ser apenas um “conferencista” e que estimule a pesquisa e o esforço, em vez de se contentar em transmitir soluções já prontas.
Estratégias para uma nova postura
Nesse marco, velhos atores voltam à cena: a) o grupo é um deles – em contraponto à fragmentação e excessiva especialização, à vida cada vez mais isolada e individualista. A atividade grupal dos discentes se impõe em práticas multidisciplinares; é um recurso a ser retomado e incrementado em sala de aula; o aluno está sendo preparado para interagir e atuar com os outros, em grupo; b) a imaginação é outro recurso a ser empregado. Num ambiente que privilegia analogias e conexões, como os multimídia que nos rodeiam, a imaginação volta a jogar em parceria com o pensamento lógico-científico. “Há todo um elenco de saberes práticos, a exemplo da informática, em que os conhecimentos atuantes são rapidamente substituídos por outros, num ritmo difícil de ser acompanhado pela atividade pedagógica das escolas” (Sodré 2002: 96). Como ensina a pesquisadora Bianca Santana:
Os recursos educacionais abertos criam a oportunidade para uma transformação ainda mais fundamental na educação: a de envolver educadores e estudantes (e mesmo aqueles não estejam formalmente vinculados a uma instituição de ensino) no processo criativo de desenvolver e adaptar recursos educacionais (Santana, 2012: 140).
Devido a esta diferença entre o ensinar e o aprender, a que já nos referimos, não é difícil entender como o ensino tradicional não só não favorece a aprendizagem como, muitas vezes, a dificulta. A aula expositiva faz com que o aluno não apenas se desconcentre e perca o interesse, como aprenda menos do que seria capaz. E, o que é pior, inibe o desenvolvimento de sua capacidade de aprender por si próprio, de exercer sua criatividade, de ser crítico, de se tornar autônomo e responsável. E isso é um legado bem mais importante do que a absorção de conteúdos: o desenvolvimento do aprendiz como ser humano, preparando-se para atuar e interagir em um mundo em permanente e acelerado processo de mudança, onde a certeza de hoje é a dúvida de amanhã.
Num texto curto e paradigmático, Barranquilla e 50 anos de solidão, publicado na “Ilustrada” da Folha de S.Paulo de 13 de setembro de 2003, o cineasta Walter Salles Junior conta sua experiência de ter ido até a cidade natal do escritor Gabriel García Márquez, na Colômbia. Todos, do próprio escritor ao presidente colombiano, Belisario Betancur, lhe diziam que era imprescindível conhecer Aracataca para ter uma idéia de como surgira a Macondo de Cem anos de solidão. Essa experiência de pisar a terra, de sentir o “cheiro da goiaba” no ar é algo pessoal e intransferível. Nenhuma palestra ou conferência suprirá o contato físico e pessoal com a realidade. Essa é a força e a carga do aprendizado: pisar na lama e amassar o barro da vida real.
Por isso mesmo, a sala de aula não precisa estar restrita ao espaço delimitado pelas quatro paredes, o quadro negro e as carteiras dos alunos. Ela deve abrir-se – eliminando o que no cinema ou no teatro se chama “a quarta parede” – e prolongar-se pela biblioteca, pelos corredores, pelos museus, pelos cinemas, pelas salas de exposições, pelas lojas, pelas fábricas, enfim, pelo meio ambiente físico e social onde o verdadeiro aprendizado se desenvolve, é concreto e ligado à vida real. É ainda Burke quem nos conduz
O ensino (formal e informal) precisa deixar de ter como preocupação fundamental quem ensina (o professor, o especialista), o que ensina (as disciplinas, os conteúdos, as matérias, as tecnologias, as inovações) e como se “ensina” (as técnicas didáticas tradicionais para expor os conteúdos e prender a atenção dos alunos), e se voltar principalmente para quem aprende, por que aprende, como aprende e como ajudar o aprendiz nesse processo. O mestre deve deixar de ser aquele que “ensina” (que dá a aula, que fala, que mostra, que demonstra, que prende a atenção, que dá o show, que cobra...) para se tornar aquele que ajuda outra pessoa a aprender com ela. [...] Em resumo, ensinar deve passar a ser uma permanente tentativa de respeitar e estimular oprocesso natural de construção do conhecimento daqueles que são os únicos e verdadeiros agentes dessa construção: os aprendizes (2003: 87, itálicos do próprio autor).
Para isso, o professor deve aproveitar dos recursos à sua disposição. (E estou pensando especificamente nos professores que não tiveram, em seu processo de formação, os cursos de prática de ensino e de didática, como tantos colegas professores da área da comunicação). Alguns livros podem dar boas pistas, como o Aulas vivas, de Marcos Tarciso Masetto, um relato de seu longo trabalho e pesquisa com docentes do ensino superior[2]. Ou o trabalho de Celso Antunes, Professor bonzinho = aluno difícil, recheado de toques e de dicas. Ou o Recursos educacionais abertos: práticas colaborativas políticas públicas, de Bianca Santana; Carolina Rossini; Nelson De Lucca Pretto.
A seguir, tentarei sistematizar algumas idéias e sugestões, tiradas dessas leituras e da experiência em sala de aula, lecionando para os alunos do 1o ano do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero.
● Procure entender o papel e a dimensão de sua disciplina na grade curricular do curso. Ela é disciplina-chave, optativa, pré-requisito para disciplinas que serão estudadas nos anos seguintes? Em que pontos sua disciplina dialoga com outras ministradas para a mesma turma, nessa mesma série escolar? É possível planejar, com os professores de outras disciplinas, alguma atividade em conjunto? É importante ter essa visão panorâmica. E é muito mais criativo para os alunos perceberem que os próprios professores trabalham em parceria. Como já foi dito, o aprendizado transcende as quatro paredes da sala de aula e os alunos jamais se esquecem de atividades concretas, realizadas em outra “locação”, seja uma pesquisa na Biblioteca Municipal, seja uma peça de teatro assistida com os professores ou a visita a uma reserva indígena no município de São Paulo.
● Pense na sua disciplina paralelamente ao sistema de avaliação do curso: se é uma disciplina anual, decomponha o conteúdo em quatro bimestres; se é semestral, em dois. A formatação do curso em blocos facilita a preparação e a seqüência de atividades, discussões e pesquisas que serão programadas com parte do processo de construção do conhecimento. Ao criar a programação, dividia os conteúdos a serem estudados e pesquisados em conjunto em quatro bimestres, por exemplo, como quatro grandes capítulos, seriados pelos encontros semanais. Os alunos recebem já na primeira aula o programa completo, escolhem temas de aprofundamento e pesquisa, compõem grupos de estudo, e começam a preparar as leituras, visitas, apresentações que farão ao longo dos bimestres. Além disso, programe para cada bimestre leituras ou fichamento de livros. Discuta com os grupos, faça círculos, programe com outros professores da mesma série saídas do ambiente fechado da escola, com apresentação de relatórios que sirvam como avaliação de aprendizado de ambas disciplinas.
● Distribuídos os conteúdos da disciplina pelos dois ou quatro bimestres, é hora de montar o programa de todos os encontros semanais (em média, cada bimestre oscila entre 8 e 9 encontros-aula). Destaque os temas, conteúdos ou partes da matéria que serão abordados em cada encontro. Pode ser uma frase em quatro ou cinco linhas, que resuma o que será o projeto de discussão e estudo com os alunos. Esse roteiro é como um mapa ou bússola. Ao longo do ano, em uma semana de muito atropelo e compromissos, ao preparar a aula da semana seguinte, bastará passar a vista no programa e se sentirá “ubicado”, ou seja, vai saber o lugar onde está parado, que tema foi desenvolvido na semana anterior, qual é o passo seguinte, que material visual usará (prefira curtas-metragens de 5 a 7 minutos; projetar um filme de 130 minutos é contraproducente, não suscitará nem haverá tempo para discussões e troca de impressões. Certamente muito aluno terá dormido em aula). Com o tempo, altere e enriqueça esse programa.
● Após decompor o programa da disciplina, armando os conteúdos dos encontros semanais, pense na bibliografia nas indicações específicas de leitura de cada grande bloco. Que livros são mais indicados para que o seu aluno leia ao longo do curso? Há algum filme em que esse tema seja discutido? Algum programa de televisão abordou essa problemática? Há algum artigo de revista que possa ser utilizado, seja publicação acadêmica ou revistas de divulgação ou as de “informação semanal”? Há algum texto de cadernos culturais que valha a pena colocar à disposição dos alunos no site da escola ou em sua homepage? Pergunte aos alunos o que eles já leram sobre um determinado tema. Crie junto com eles recursos educacionais colaborativos (Santana, 2012). Tudo isso é pensar a bibliografia.
● Discuta e compartilhe com os alunos a proposta da disciplina: esse parece ser um dos grandes pulos-do-gato, de acordo com os ensinamentos de Masetto (1992) e Santana (2012). Não é preciso ter pressa em “começar” as aulas, o importante é iniciar depois de ter o projeto consensado e discutido com os alunos. Eles sentirão que o curso foi também decidido e planejado por eles.
● Do mesmo modo que você, professor, precisou estudar e entender o alcance e o lugar de sua disciplina na grade do curso, explique aos alunos a proposta de sua disciplina e em que pontos ela dialoga ou é pré-requisito para cursos posteriores. Discuta com os discentes a importância de estudar, por exemplo, Métodos e Técnicas de Pesquisa ou Realidade Econômica e Social Brasileira, como pré-requisitos para no final do curso realizar o projeto experimental ou TCC (trabalho de conclusão de curso).
● Apresentada e contextualizada a disciplina, apresente o programa com o roteiro dos encontros semanais, e faça com eles uma leitura, contrastando os tópicos. Deixe bem claro como serão realizados tanto as pesquisas como os aprofundamentos de temas por grupos, e como serão os critérios de avaliação. É importante que o aluno saiba, desde a primeira semana de aula, que o tema que escolher para pesquisar e aprofundar será ou não a sua pequena monografia de final de curso, valendo nota de avaliação para o último bimestre, por exemplo. Regras claras, iguais para todos. Aceite sugestão dos alunos, contraste opiniões, provavelmente o consenso sobre o programa será definido em diversos encontro, mas com a vantagem de que os discentes já têm uma visão panorâmica da disciplina e de sua conexão e contextualização com o curso. E isso é um ganho.
● Bola na mão e mão na bola. Ainda nesses primeiros encontros, deixe claro com os alunos como serão as regras do jogo. É comum o professor comentar que todo aluno sabe como deve se portar em sala de aula. Parece que não é bem assim. Como se diz no futebol, “bola na mão é uma coisa, mão na bola é outra, completamente diferente”. Deixe as regras claras com os alunos. Os critérios de presença, de reposição de faltas, os limites de negociação. “Todos os alunos sabem o que os leva ao cartão amarelo? Ensinar não é fácil e educar é mais difícil ainda, mas não ensina e não educa quem não define limites, quem não constrói democraticamente as linhas do que é e do que não é permitido. O professor jamais pode acreditar nessa bobagem de que cada aluno já sabe o que pode e o que não pode. Ninguém cresce se não é desafiado e todo jovem para crescer necessita desafiar. Por isso mesmo, esses limites têm de ser claros, lúcidos, reiterados” (Antunes, 2003: 25).
● A avaliação: esse é outro ponto chave do processo. Mas a avaliação entendida como processo voltado mais para identificar o que aluno aprendeu do que um instrumento para atribuir nota, embora ela seja necessária. A avaliação deve ser entendida como ferramenta para eventuais correções de rota, além de um feedback contínuo ao longo do curso, com comentários do professor nas conversas com os discentes, nas apresentações de seminários. O professor Masetto ensina que esse feedback deve sempre ser traduzido por um comentário e não simplesmente por número. Ao devolver um trabalho ou uma prova, dê-se ao trabalho de escrever algumas linhas de observação e orientação. Nada frustra mais um aluno do que receber um longo trabalho apenas com um conceito ou nota, nenhuma marca ao longo das páginas dando certeza de que alguém leu o resultado de sua pesquisa. Lembre-se, o processo de avaliação deve ser conduzido sem tensão, sem o clima de terror de “provas finais”, mas apenas como etapa do processo, uma oportunidade a mais de aprendizagem (Masetto, 1992: 24), tanto para o aluno como para o professor (que terá na prova ou na arguição um retorno da qualidade de seu programa como incentivador da construção de conhecimento por parte dos alunos).
● Incentive e aposte em seu aluno. Escute com atenção, sem jamais permitir chantagens emocionais. Como se disse, educar é exigir, não fazer o que o aluno quer.
Ao realizar as pesquisas e leituras para encaminhar essa reflexão, boa parte da literatura que encontrei sobre a atuação docente em sala de aula supõe um aluno infantil ou adolescente. São livros focados nas práticas de ensino do 1º e 2º graus, supondo um aprendiz sempre dependente da orientação de um mestre. Quase nada se escreve sobre o ensino para o adulto universitário (como diz Masetto, existe bibliografia sobre alfabetização de adultos, o que não é o caso). Considerar o aluno universitário como adulto não é um traço comum entre nós professores, confessa Marcos Masetto. Ele escreve:
Trazemos para cima de nossos ombros a responsabilidade total ou maior pela aprendizagem dos alunos. Nós planejamos o curso, nós damos as aulas, nós preparamos as apostilas, corrigimos os trabalhos e exercícios, orientamos, guiamos, dirigimos. O nosso aluno ouve, lê, estuda, anota, faz os exercícios e as provas, assiste às aulas. É pouco ativo, pouco participante, quase nada responsável nem responsabilizado por sua aprendizagem (Masetto, 1992: 78)
Por quê? Porque insistimos em não apostar em nosso aluno, em não valorizá-lo e entender que ele é um adulto. Por que não propor que os próprios discentes sugiram os temas que gostariam de aprofundar, como avaliação de seu aprendizado? Por que todos os alunos de uma sala têm de ler o mesmo livro e estudar os mesmos temas? Reflita: você, professor, gosta de ser monitorado e dirigido o tempo todo? Gosta que o supervisor de ensino esteja toda semana dizendo como deve preparar e conduzir a sua aula? Pois é exatamente isso que muitos de nós fazemos com nossos alunos na universidade.
Pesquisadores e especialistas identificam duas características no processo de aprendizagem de um adulto: a) a autonomia do aprendiz na condução de seu próprio processo e jeito de descobrir e construir o conhecimento, e b) o uso da experiência pessoal como um recurso para reforçar o aprendizado. Ou seja, alunos adultos aprendem melhor quando podem controlar os passos de sua aprendizagem. E, como cada pessoa tem um estilo próprio de aprender, é contraproducente prescrever para todos uma única receita, um único modo de aprender. Estilos cooperativos de ensinar e de aprender resultarão em significativa e efetiva aprendizagem (Masetto, 1992: 80-81).
Diante de tudo isso, que tal parar agora e refletir, planejando o que dá para começar a mudar?
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[1] Peter Ferdinand Drucker (1909-2005), escritor, professor e consultor administrativo de origem austríaca, conside-rado “o pai da administração moderna”.
[2] Masetto coordenou uma experiência em que professores universitários conseguiram adesão e alta participação de alunos em cursos como Cálculo Diferencial e Integral ou alunos de graduação em Álgebra Linear. Uma experiência a levar em conta.
fonte: https://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/o-papel-do-docente-hoje-e-fazer-parceria-com-os-alunos
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