Nosso racismo é um crime perfeito - Entrevista com Kabengele Munanga
publicado em 08/09/2010
Por Camila Souza Ramos e Glauco Faria
Fonte Revista Forum - edição 89 - agosto 2010
O antropólogo Kabengele Munanga fala sobre o mito da democracia racial
brasileira, a polêmica com Demétrio Magnoli e o papel da mídia e da
educação no combate ao preconceito no país
Fórum - O senhor veio do antigo Zaire que, apesar de ter alguns pontos
de contato com a cultura brasileira e a cultura do Congo, é um país
bem diferente. O senhor sentiu, quando veio pra cá, a questão racial?
Como foi essa mudança para o senhor?
Kabengele - Essas coisas não são tão abertas como a gente pensa.
Cheguei aqui em 1975, diretamente para a USP, para fazer doutorado.
Não se depara com o preconceito à primeira vista, logo que sai do
aeroporto. Essas coisas vêm pouco a pouco, quando se começa a
descobrir que você entra em alguns lugares e percebe que é único, que
te olham e já sabem que não é daqui, que não é como “nossos negros”, é
diferente. Poderia dizer que esse estranhamento é por ser estrangeiro,
mas essa comparação na verdade é feita em relação aos negros da terra,
que não entram em alguns lugares ou não entram de cabeça erguida.
Depois, com o tempo, na academia, fiz disciplinas em antropologia e
alguns de meus professores eram especialistas na questão racial. Foi
através da academia, da literatura, que comecei a descobrir que havia
problemas no país. Uma das primeiras aulas que fiz foi em 1975, 1976,
já era uma disciplina sobre a questão racial com meu orientador João
Batista Borges Pereira. Depois, com o tempo, você vai entrar em algum
lugar em que está sozinho e se pergunta: onde estão os outros? As
pessoas olhavam mesmo, inclusive olhavam mais quando eu entrava com
minha mulher e meus filhos. Porque é uma família inter-racial: a
mulher branca, o homem negro, um filho negro e um filho mestiço. Em
todos os lugares em que a gente entrava, era motivo de curiosidade. O
pessoal tentava ser discreto, mas nem sempre escondia. Entrávamos em
lugares onde geralmente os negros não entram.
A partir daí você começa a buscar uma explicação para saber o porquê e
se aproxima da literatura e das aulas da universidade que falam da
discriminação racial no Brasil, os trabalhos de Florestan Fernandes,
do Otavio Ianni, do meu próprio orientador e de tantos outros que
trabalharam com a questão. Mas o problema é que quando a pessoa é
adulta sabe se defender, mas as crianças não. Tenho dois filhos que
nasceram na Bélgica, dois no Congo e meu caçula é brasileiro. Quantas
vezes, quando estavam sozinhos na rua, sem defesa, se depararam com a
polícia?
Meus filhos estudaram em escola particular, Colégio Equipe, onde
estudavam filhos de alguns colegas professores. Eu não ia buscá-los na
escola, e quando saíam para tomar ônibus e voltar para casa com alguns
colegas que eram brancos, eles eram os únicos a ser revistados. No
entanto, a condição social era a mesma e estudavam no mesmo colégio.
Por que só eles podiam ser suspeitos e revistados pela polícia? Essa
situação eu não posso contar quantas vezes vi acontecer. Lembro que
meu filho mais velho, que hoje é ator, quando comprou o primeiro carro
dele, não sei quantas vezes ele foi parado pela polícia. Sempre
apontando a arma para ele para mostrar o documento. Ele foi instruído
para não discutir e dizer que os documentos estão no porta-luvas,
senão podem pensar que ele vai sacar uma arma. Na realidade, era
suspeito de ser ladrão do próprio carro que ele comprou com o trabalho
dele. Meus filhos até hoje não saem de casa para atravessar a rua sem
documento. São adultos e criaram esse hábito, porque até você provar
que não é ladrão... A geografia do seu corpo não indica isso.
Então, essa coisa de pensar que a diferença é simplesmente social, é
claro que o social acompanha, mas e a geografia do corpo? Isso aqui
também vai junto com o social, não tem como separar as duas coisas.
Fui com o tempo respondendo à questão, por meio da vivência, com o
cotidiano e as coisas que aprendi na universidade, depoimentos de
pessoas da população negra, e entendi que a democracia racial é um
mito. Existe realmente um racismo no Brasil, diferenciado daquele
praticado na África do Sul durante o regime do apartheid, diferente
também do racismo praticado nos EUA, principalmente no Sul. Porque
nosso racismo é, utilizando uma palavra bem conhecida, sutil. Ele é
velado. Pelo fato de ser sutil e velado isso não quer dizer que faça
menos vítimas do que aquele que é aberto. Faz vítimas de qualquer
maneira.
Quando você tem um sistema como o sul-africano ou um sistema de
restrição de direitos como houve nos EUA, o inimigo está claro. No
caso brasileiro é mais difícil combatê-lo...
Claro, é mais difícil. Porque você não identifica seu opressor. Nos
EUA era mais fácil porque começava pelas leis. A primeira
reivindicação: o fim das leis racistas. Depois, se luta para
implementar políticas públicas que busquem a promoção da igualdade
racial. Aqui é mais difícil, porque não tinha lei nem pra discriminar,
nem pra proteger. As leis pra proteger estão na nova Constituição que
diz que o racismo é um crime inafiançável. Antes disso tinha a lei
Afonso Arinos, de 1951. De acordo com essa lei, a prática do racismo
não era um crime, era uma contravenção. A população negra e indígena
viveu muito tempo sem leis nem para discriminar nem para proteger.
Aqui no Brasil há mais dificuldade com relação ao sistema de cotas
justamente por conta do mito da democracia racial?
Tem segmentos da população a favor e contra. Começaria pelos que estão
contra as cotas, que apelam para a própria Constituição, afirmando que
perante a lei somos todos iguais. Então não devemos tratar os cidadãos
brasileiros diferentemente, as cotas seriam uma inconstitucionalidade.
Outro argumento contrário, que já foi demolido, é a ideia de que seria
difícil distinguir os negros no Brasil para se beneficiar pelas cotas
por causa da mestiçagem. O Brasil é um país de mestiçagem, muitos
brasileiros têm sangue europeu, além de sangue indígena e africano,
então seria difícil saber quem é afro-descendente que poderia ser
beneficiado pela cota. Esse argumento não resistiu. Por quê? Num país
onde existe discriminação antinegro, a própria discriminação é a prova
de que é possível identificar os negros. Senão não teria
discriminação.
Em comparação com outros países do mundo, o Brasil é um país que tem
um índice de mestiçamento muito mais alto. Mas isso não pode impedir
uma política, porque basta a autodeclaração. Basta um candidato
declarar sua afro-descendência. Se tiver alguma dúvida, tem que
averiguar. Nos casos-limite, o indivíduo se autodeclara
afrodescendente. Às vezes, tem erros humanos, como o que aconteceu na
UnB, de dois jovens mestiços, de mesmos pais, um entrou pelas cotas
porque acharam que era mestiço, e o outro foi barrado porque acharam
que era branco. Isso são erros humanos. Se tivessem certeza absoluta
que era afro-descendente, não seria assim. Mas houve um recurso e ele
entrou. Esses casos-limite existem, mas não é isso que vai impedir uma
política pública que possa beneficiar uma grande parte da população
brasileira.
Além do mais, o critério de cota no Brasil é diferente dos EUA. Nos
EUA, começaram com um critério fixo e nato. Basta você nascer negro.
No Brasil não. Se a gente analisar a história, com exceção da UnB, que
tem suas razões, em todas as universidades brasileiras que entraram
pelo critério das cotas, usaram o critério étnico-racial combinado com
o critério econômico. O ponto de partida é a escola pública. Nos EUA
não foi isso. Só que a imprensa não quer enxergar, todo mundo quer
dizer que cota é simplesmente racial. Não é. Isso é mentira, tem que
ver como funciona em todas as universidades. É necessário fazer um
certo controle, senão não adianta aplicar as cotas. No entanto, se
mantém a ideia de que, pelas pesquisas quantitativas, do IBGE, do
Ipea, dos índices do Pnud, mostram que o abismo em matéria de educação
entre negros e brancos é muito grande. Se a gente considerar isso
então tem que ter uma política de mudança. É nesse sentido que se
defende uma política de cotas.
O racismo é cotidiano na sociedade brasileira. As pessoas que estão
contra cotas pensam como se o racismo não tivesse existido na
sociedade, não estivesse criando vítimas. Se alguém comprovar que não
tem mais racismo no Brasil, não devemos mais falar em cotas para
negros. Deveríamos falar só de classes sociais. Mas como o racismo
ainda existe, então não há como você tratar igualmente as pessoas que
são vítimas de racismo e da questão econômica em relação àquelas que
não sofrem esse tipo de preconceito. A própria pesquisa do IPEA mostra
que se não mudar esse quadro, os negros vão levar muitos e muitos anos
para chegar aonde estão os brancos em matéria de educação. Os que são
contra cotas ainda dão o argumento de que qualquer política de
diferença por parte do governo no Brasil seria uma política de
reconhecimento das raças e isso seria um retrocesso, que teríamos
conflitos, como os que aconteciam nos EUA.
Que é o argumento do Demétrio Magnoli.
Isso é muito falso, porque já temos a experiência, alguns falam de
mais de 70 universidades públicas, outros falam em 80. Já ouviu falar
de conflitos raciais em algum lugar, linchamentos raciais? Não existe.
É claro que houve manifestações numa universidade ou outra, umas
pichações, "negro, volta pra senzala". Mas isso não se caracteriza
como conflito racial. Isso é uma maneira de horrorizar a população,
projetar conflitos que na realidade não vão existir.
Agora o DEM entrou com uma ação no STF pedindo anulação das cotas. O
que motiva um partido como o DEM, qual a conexão entre a ideologia de
um partido ou um intelectual como o Magnoli e essa oposição ao sistema
de cotas? Qual é a raiz dessa resistência?
Tenho a impressão que as posições ideológicas não são explícitas, são
implícitas. A questão das cotas é uma questão política. Tem pessoas no
Brasil que ainda acreditam que não há racismo no país. E o argumento
desse deputado do DEM é esse, de que não há racismo no Brasil, que a
questão é simplesmente socioeconômica. É um ponto de vista refutável,
porque nós temos provas de que há racismo no Brasil no cotidiano. O
que essas pessoas querem? Status quo. A ideia de que o Brasil vive
muito bem, não há problema com ele, que o problema é só com os pobres,
que não podemos introduzir as cotas porque seria introduzir uma
discriminação contra os brancos e pobres. Mas eles ignoram que os
brancos e pobres também são beneficiados pelas cotas, e eles negam
esse argumento automaticamente, deixam isso de lado.
Mas isso não é um cinismo de parte desses atores políticos, já que
eles são contra o sistema de cotas, mas também são contra o
Bolsa-Família ou qualquer tipo de política compensatória no campo
socioeconômico?
É interessante, porque um país que tem problemas sociais do tamanho do
Brasil deveria buscar caminhos de mudança, de transformação da
sociedade. Cada vez que se toca nas políticas concretas de mudança,
vem um discurso. Mas você não resolve os problemas sociais somente com
a retórica. Quanto tempo se fala da qualidade da escola pública? Estou
aqui no Brasil há 34 anos. Desde que cheguei aqui, a escola pública
mudou em algum lugar? Não, mas o discurso continua. "Ah, é só mudar a
escola pública." Os mesmos que dizem isso colocam os seus filhos na
escola particular e sabem que a escola pública é ruim. Poderiam eles,
como autoridades, dar melhor exemplo e colocar os filhos deles em
escola pública e lutar pelas leis, bom salário para os educadores,
laboratórios, segurança. Mas a coisa só fica no nível da retórica.
E tem esse argumento legalista, "porque a cota é uma
inconstitucionalidade, porque não há racismo no Brasil". Há juristas
que dizem que a igualdade da qual fala a Constituição é uma igualdade
formal, mas tem a igualdade material. É essa igualdade material que é
visada pelas políticas de ação afirmativa. Não basta dizer que somos
todos iguais. Isso é importante, mas você tem que dar os meios e isso
se faz com as políticas públicas. Muitos disseram que as cotas nas
universidades iriam atingir a excelência universitária. Está
comprovado que os alunos cotistas tiveram um rendimento igual ou
superior aos outros. Então a excelência não foi prejudicada. Aliás, é
curioso falar de mérito como se nosso vestibular fosse exemplo de
democracia e de mérito. Mérito significa simplesmente que você coloca
como ponto de partida as pessoas no mesmo nível.
Quando as pessoas não são iguais, não se pode colocar no ponto de
partida para concorrer igualmente. É como você pegar uma pessoa com um
fusquinha e outro com um Mercedes, colocar na mesma linha de partida e
ver qual o carro mais veloz. O aluno que vem da escola pública, da
periferia, de péssima qualidade, e o aluno que vem de escola
particular de boa qualidade, partindo do mesmo ponto, é claro que os
que vêm de uma boa escola vão ter uma nota superior. Se um aluno que
vem de um Pueri Domus, Liceu Pasteur, tira nota 8, esse que vem da
periferia e tirou nota 5 teve uma caminhada muito longa. Essa nota 5
pode ser mais significativa do que a nota 7 ou 8. Dando oportunidade
ao aluno, ele não vai decepcionar.
Foi isso que aconteceu, deram oportunidade. As cotas são aplicadas
desde 2003. Nestes sete anos, quantos jovens beneficiados pelas cotas
terminaram o curso universitário e quantos anos o Brasil levaria para
formar o tanto de negros sem cotas? Talvez 20 ou mais. Isso são coisas
concretas para as quais as pessoas fecham os olhos. No artigo do
professor Demétrio Magnoli, ele me critica, mas não leu nada. Nem uma
linha de meus livros. Simplesmente pegou o livro da Eneida de Almeida
dos Santos, Mulato, negro não-negro e branco não-branco que pediu para
eu fazer uma introdução, e desta introdução de três páginas ele tirou
algumas frases e, a partir dessas frases, me acusa de ser um charlatão
acadêmico, de professar o racismo científico abandonado há mais de um
século e fazer parte de um projeto de racialização oficial do Brasil.
Nunca leu nada do que eu escrevi.
A autora do livro é mestiça, psiquiatra e estuda a dificuldade que os
mestiços entre branco e negro têm pra construir a sua identidade. Fiz
a introdução mostrando que eles têm essa dificuldade justamente por
causa de serem negros não-negros e brancos não-brancos. Isso prejudica
o processo, mas no plano político, jurídico, eles não podem ficar
ambivalentes. Eles têm que optar por uma identidade, têm que aceitar
sua negritude, e não rejeitá-la. Com isso ele acha que eu estou
professando a supressão dos mestiços no Brasil e que isso faz parte do
projeto de racialização do brasileiro. Não tinha nada para me acusar,
soube que estou defendendo as cotas, tirou três frases e fez a
acusação dele no jornal.
O senhor toca na questão do imaginário da democracia racial, mas as
pessoas são formadas para aceitarem esse mito...
O racismo é uma ideologia. A ideologia só pode ser reproduzida se as
próprias vítimas aceitam, a introjetam, naturalizam essa ideologia.
Além das próprias vítimas, outros cidadãos também, que discriminam e
acham que são superiores aos outros, que têm direito de ocupar os
melhores lugares na sociedade. Se não reunir essas duas condições, o
racismo não pode ser reproduzido como ideologia, mas toda educação que
nós recebemos é para poder reproduzi-la.
Há negros que introduziram isso, que alienaram sua humanidade, que
acham que são mesmo inferiores e o branco tem todo o direito de ocupar
os postos de comando. Como também tem os brancos que introjetaram isso
e acham mesmo que são superiores por natureza. Mas para você lutar
contra essa ideia não bastam as leis, que são repressivas, só vão
punir. Tem que educar também. A educação é um instrumento muito
importante de mudança de mentalidade e o brasileiro foi educado para
não assumir seus preconceitos. O Florestan Fernandes dizia que um dos
problemas dos brasileiros é o “preconceito de ter preconceito de ter
preconceito”. O brasileiro nunca vai aceitar que é preconceituoso. Foi
educado para não aceitar isso. Como se diz, na casa de enforcado não
se fala de corda.
Quando você está diante do negro, dizem que tem que dizer que é
moreno, porque se disser que é negro, ele vai se sentir ofendido. O
que não quer dizer que ele não deve ser chamado de negro. Ele tem
nome, tem identidade, mas quando se fala dele, pode dizer que é negro,
não precisa branqueá-lo, torná-lo moreno. O brasileiro foi educado
para se comportar assim, para não falar de corda na casa de enforcado.
Quando você pega um brasileiro em flagrante de prática racista, ele
não aceita, porque não foi educado para isso. Se fosse um americano,
ele vai dizer: "Não vou alugar minha casa para um negro". No Brasil,
vai dizer: "Olha, amigo, você chegou tarde, acabei de alugar". Porque
a educação que o americano recebeu é pra assumir suas práticas
racistas, pra ser uma coisa explícita.
Quando a Folha de S. Paulo fez aquela pesquisa de opinião em 1995,
perguntaram para muitos brasileiros se existe racismo no Brasil. Mais
de 80% disseram que sim. Perguntaram para as mesmas pessoas: "você já
discriminou alguém?". A maioria disse que não. Significa que há
racismo, mas sem racistas. Ele está no ar... Como você vai combater
isso? Muitas vezes o brasileiro chega a dizer ao negro que reage:
"você que é complexado, o problema está na sua cabeça". Ele rejeita a
culpa e coloca na própria vítima. Já ouviu falar de crime perfeito?
Nosso racismo é um crime perfeito, porque a própria vítima é que é
responsável pelo seu racismo, quem comentou não tem nenhum problema.
O humorista Danilo Gentilli escreveu no Twitter uma piada a respeito
do King Kong, comparando com um jogador de futebol que saía com
loiras. Houve uma reação grande e a continuação dos argumentos dele
para se justificar vai ao encontro disso que o senhor está falando.
Ele dizia que racista era quem acusava ele, e citava a questão do
orgulho negro como algo de quem é racista.
Faz parte desse imaginário. O que está por trás que está fazendo uma
ilustração de King Kong, que ele compara a um jogador de futebol que
vai casar com uma loira, é a ideia de alguém que ascende na vida e vai
procurar sua loira. Mas qual é o problema desse jogador de futebol?
São pessoas vítimas do racismo que acham que agora ascenderam na vida
e, para mostrar isso, têm que ter uma loira que era proibida quando
eram pobres? Pode até ser uma explicação. Mas essa loira não é uma
pessoa humana que pode dizer não ou sim e foi obrigada a ir com o King
Kong por causa de dinheiro? Pode ser, quantos casamentos não são por
dinheiro na nossa sociedade? A velha burguesia só se casa dentro da
velha burguesia. Mas sempre tem pessoas que desobedecem as normas da
sociedade.
Essas jovens brancas, loiras, também pulam a cerca de suas identidades
pra casar com um negro jogador. Por que a corda só arrebenta do lado
do jogador de futebol? No fundo, essas pessoas não querem que os
negros casem com suas filhas. É uma forma de racismo. Estão praticando
um preconceito que não respeita a vontade dessas mulheres nem essas
pessoas que ascenderam na vida, numa sociedade onde o amor é algo sem
fronteiras, e não teria tantos mestiços nessa sociedade. Com tudo o
que aconteceu no campo de futebol com aquele jogador da Argentina que
chamou o Grafite de macaco, com tudo o que acontece na Europa, esse
humorista faz uma ilustração disso, ou é uma provocação ou quer
reafirmar os preconceitos na nossa sociedade.
É que no caso, o Danilo Gentili ainda justificou sua piada com um
argumento muito simplório: "por que eu posso chamar um gordo de baleia
e um negro de macaco", como se fosse a mesma coisa.
É interessante isso, porque tenho a impressão de que é um cara que não
conhece a história e o orgulho negro tem uma história. São seres
humanos que, pelo próprio processo de colonização, de escravidão, a
essas pessoas foi negada sua humanidade. Para poder se recuperar, ele
tem que assumir seu corpo como negro. Se olhar no espelho e se achar
bonito ou se achar feio. É isso o orgulho negro. E faz parte do
processo de se assumir como negro, assumir seu corpo que foi recusado.
Se o humorista conhecesse isso, entenderia a história do orgulho
negro. O branco não tem motivo para ter orgulho branco porque ele é
vitorioso, está lá em cima. O outro que está lá em baixo que deve ter
orgulho, que deve construir esse orgulho para poder se reerguer.
O senhor tocou no caso do Grafite com o Desábato, e recentemente
tivemos, no jogo da Libertadores entre Cruzeiro e Grêmio, o caso de um
jogador que teria sido chamado de macaco por outro atleta. Em geral,
as pessoas – jornalistas que comentaram, a diretoria gremista –
argumentavam que no campo de futebol você pode falar qualquer coisa, e
que se as pessoas fossem se importar com isso, não teria como ter jogo
de futebol. Como você vê esse tipo de situação?
Isso é uma prova daquilo que falei, os brasileiros são educados para
não assumir seus hábitos, seu racismo. Em outros países, não teria
essa conversa de que no campo de futebol vale. O pessoal pune mesmo.
Mas aqui, quando se trata do negro... Já ouviu caso contrário, de
negro que chama branco de macaco? Quando aquele delegado prendeu o
jogador argentino no caso do Grafite, todo mundo caiu em cima. Os
técnicos, jornalistas, esportistas, todo mundo dizendo que é assim no
futebol. Então a gente não pode educar o jogador de futebol, tudo é
permitido? Quando há violência física, eles são punidos, mas isso aqui
é uma violência também, uma violência simbólica. Por que a violência
simbólica é aceita a violência física é punida?
Como o senhor vê hoje a aplicação da lei que determina a
obrigatoriedade do ensino de cultura africana nas escolas? Os
professores, de um modo geral, estão preparados para lidar com a
questão racial?
Essa lei já foi objeto de crítica das pessoas que acham que isso
também seria uma racialização do Brasil. Pessoas que acham que, sendo
a população brasileira uma população mestiça, não é preciso ensinar a
cultura do negro, ensinar a história do negro ou da África. Temos uma
única história, uma única cultura, que é uma cultura mestiça. Tem
pessoas que vão nessa direção, pensam que isso é uma racialização da
educação no Brasil.
Mas essa questão do ensino da diversidade na escola não é propriedade
do Brasil. Todos os países do mundo lidam com a questão da
diversidade, do ensino da diversidade na escola, até os que não foram
colonizadores, os nórdicos, com a vinda dos imigrantes, estão tratando
da questão da diversidade na escola.
O Brasil deveria tratar dessa questão com mais força, porque é um país
que nasceu do encontro das culturas, das civilizações. Os europeus
chegaram, a população indígena – dona da terra – os africanos, depois
a última onda imigratória é dos asiáticos. Então tudo isso faz parte
das raízes formadoras do Brasil que devem fazer parte da formação do
cidadão. Ora, se a gente olhar nosso sistema educativo, percebemos que
a história do negro, da África, das populações indígenas não fazia
parte da educação do brasileiro.
Nosso modelo de educação é eurocêntrico. Do ponto de vista da
historiografia oficial, os portugueses chegaram na África, encontraram
os africanos vendendo seus filhos, compraram e levaram para o Brasil.
Não foi isso que aconteceu. A história da escravidão é uma história da
violência. Quando se fala de contribuições, nunca se fala da África.
Se se introduzir a história do outro de uma maneira positiva, isso
ajuda.
É por isso que a educação, a introdução da história dele no Brasil,
faz parte desse processo de construção do orgulho negro. Ele tem que
saber que foi trazido e aqui contribuiu com o seu trabalho, trabalho
escravizado, para construir as bases da economia colonial brasileira.
Além do mais, houve a resistência, o negro não era um João-Bobo que
simplesmente aceitou, senão a gente não teria rebeliões das senzalas,
o Quilombo dos Palmares, que durou quase um século. São provas de
resistência e de defesa da dignidade humana. São essas coisas que
devem ser ensinadas. Isso faz parte do patrimônio histórico de todos
os brasileiros. O branco e o negro têm que conhecer essa história
porque é aí que vão poder respeitar os outros.
Voltando a sua pergunta, as dificuldades são de duas ordens. Em
primeiro lugar, os educadores não têm formação para ensinar a
diversidade. Estudaram em escolas de educação eurocêntrica, onde não
se ensinava a história do negro, não estudaram história da África,
como vão passar isso aos alunos? Além do mais, a África é um
continente, com centenas de culturas e civilizações. São 54 países
oficialmente. A primeira coisa é formar os educadores, orientar por
onde começou a cultura negra no Brasil, por onde começa essa história.
Depois dessa formação, com certo conteúdo, material didático de boa
qualidade, que nada tem a ver com a historiografia oficial, o processo
pode funcionar.
Outra questão que se discute é sobre o negro nos espaços de poder. Não
se veem negros como prefeitos, governadores. Como trabalhar contra
isso?
O que é um país democrático? Um país democrático, no meu ponto de
vista, é um país que reflete a sua diversidade na estrutura de poder.
Nela, você vê mulheres ocupando cargos de responsabilidade, no
Executivo, no Legislativo, no Judiciário, assim como no setor privado.
E ainda os índios, que são os grandes discriminados pela sociedade.
Isso seria um país democrático. O fato de você olhar a estrutura de
poder e ver poucos negros ou quase não ver negros, não ver mulheres,
não ver índios, isso significa que há alguma coisa que não foi feita
nesse país. Como construção da democracia, a representatividade da
diversidade não existe na estrutura de poder. Por quê?
Se você fizer um levantamento no campo jurídico, quantos
desembargadores e juízes negros têm na sociedade brasileira? Se você
for pras universidades públicas, quantos professores negros tem,
começando por minha própria universidade? Esta universidade tem cerca
de 5 mil professores. Quantos professores negros tem na USP? Nessa
grande faculdade, que é a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH), uma das maiores da USP junto com a Politécnica, tenho
certeza de que na minha faculdade fui o primeiro negro a entrar como
professor. Desde que entrei no Departamento de Antropologia, não
entrou outro. Daqui três anos vou me aposentar. O professor Milton
Santos, que era um grande professor, quase Nobel da Geografia, entrou
no departamento, veio do exterior e eu já estava aqui. Em toda a USP,
não sou capaz de passar de dez pessoas conhecidas. Pode ter mais, mas
não chega a 50, exagerando. Se você for para as grandes universidades
americanas, Harvard, Princeton, Standford, você vai encontrar mais
negros professores do que no Brasil. Lá eles são mais racistas, ou
eram mais racistas, mas como explicar tudo isso?
120 anos de abolição. Por que não houve uma certa mobilidade social
para os negros chegarem lá? Há duas explicações: ou você diz que ele é
geneticamente menos inteligente, o que seria uma explicação racista,
ou encontra explicação na sociedade. Quer dizer que se bloqueou a sua
mobilidade. E isso passa por questão de preconceito, de discriminação
racial. Não há como explicar isso. Se você entender que os imigrantes
japoneses chegaram, nós comemoramos 100 anos recentemente da sua
vinda, eles tiveram uma certa mobilidade. Os coreanos também ocupam um
lugar na sociedade. Mas os negros já estão a 120 anos da abolição.
Então tem uma explicação. Daí a necessidade de se mudar o quadro. Ou
nós mantemos o quadro, porque se não mudamos estamos racializando o
Brasil, ou a gente mantém a situação para mostrar que não somos
racistas. Porque a explicação é essa, se mexer, somos racistas e
estamos racializando. Então vamos deixar as coisas do jeito que estão.
Esse é o dilema da sociedade.
Como o senhor vê o tratamento dado pela mídia à questão racial?
A imprensa faz parte da sociedade. Acho que esse discurso do mito da
democracia racial é um discurso também que é absorvido por alguns
membros da imprensa. Acho que há uma certa tendência na imprensa pelo
fato de ser contra as políticas de ação afirmativa, sendo que também
não são muito favoráveis a essa questão da obrigatoriedade do ensino
da história do negro na escola.
Houve, no mês passado, a II Conferência Nacional de Promoção da
Igualdade Racial. Silêncio completo da imprensa brasileira. Não houve
matérias sobre isso. Os grandes jornais da imprensa escrita não
pautaram isso. O silêncio faz parte do dispositivo do racismo
brasileiro. Como disse Elie Wiesel, o carrasco mata sempre duas vezes.
A segunda mata pelo silêncio. O silêncio é uma maneira de você matar a
consciência de um povo. Porque se falar sobre isso abertamente, as
pessoas vão buscar saber, se conscientizar, mas se ficar no silêncio a
coisa morre por aí. Então acho que o silêncio da imprensa, no meu
ponto de vista, passa por essa estratégia, é o não-dito.
Acabei de passar por uma experiência interessante. Saí da Conferência
Nacional e fui para Barcelona, convidado por um grupo de brasileiros
que pratica capoeira. Claro, receberam recursos do Ministério das
Relações Exteriores, que pagou minha passagem e a estadia. Era uma
reunião pequena de capoeiristas e fiz uma conferência sobre a cultura
negra no Brasil. Saiu no El Pais, que é o jornal mais importante da
Espanha, noticiou isso, uma coisa pequena. Uma conferência nacional
deste tamanho aqui não se fala. É um contrassenso. O silêncio da
imprensa não é um silêncio neutro, é um silêncio que indica uma certa
orientação da questão racial. Tem que não dizer muita coisa e ficar
calado. Amanhã não se fala mais, acabou.
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